Vem da força do sangue negro, de suas lutas do passado e de exemplos como Conceição Evaristo, Dandara e Aqualtune, a voz de Isabella Puente, ou Bell Puã. Expoente do Slam pernambucano, a poetisa usa os seus versos rasgados para escancarar a realidade das minorias sociais e bradar a resistência das mulheres negras, dos negros, dos periféricos. A sua potência está na sua vivência, inteligência e sua emoção- legítimas e arrebatadoras.
A história do Slam conta que o movimento surgiu nos anos 1980, em Chicago, nos Estados Unidos. Chegou ao Brasil nos anos 2000. E agora, como um furacão, em todos os cantos do país, aparece como um canal do discurso de negros, mulheres, LGBTI+s. As palavras e expressões típicas da oralidade ganham ritmo nas apresentações, que geralmente ocorrem em praças e outros espaços públicos. O corpo é peça-chave: gesticular, circular pelo centro da roda de gente que se forma, elevar a voz. A força do Slam está, além de no discurso, na presença.
No Recife, a voz dos oprimidos ganha forma, poder, ganha as ruas nas performances das slammers, que não poupam acidez nas palavras e voam para cima com o dobro de potência da opressão. Mas o resultado não é dor, não é raiva. É coração palpitando, lágrimas nos olhos, um convite à realidade de quem tem poucos ou nenhum privilégio. E o mais importante: faz entender que se curvar à luta e à dor do outro, ter empatia, é o primeiro passo para qualquer evolução
Bell aparece, nacional e internacionalmente, como nome deste movimento. Mestranda em História pela UFPE, a pernambucana deu uma pausa na sua rotina corrida, que agora a divide entre sua arte, o mestrado e a gravidez, já no 4º mês, para papo com o site Roberta Jungmann, durante uma manhã no ateliê Pangeia, na rua Mariz e Barros, no Recife Antigo. Conversar com Bell deveria ser um alento de vivacidade. O ateliê foi escolhido por isso. As cores fortes do grupo dialogam com a estética da rua que pulsa. E é a isto que esta matéria se propõe a ser: uma sacudida na alma através da arte.
Ela contou das experiências no concurso de Slam nacional, em São Paulo, que lhe garantiu passagem para a etapa em Paris, onde conheceu e dividiu conhecimento com gente de todo o mundo, além da participação na Flip 2018. Bell vai de Platão a Racionais, caminha entre o erudito e o que vem das ruas e, sem dúvida, seu nome ainda será muito ouvido por aí.
Lugar no mundo
A posição privilegiada economicamente, de moradora da rua dos Navegantes, no bairro de Boa Viagem, em um dos metros quadrados mais caros do Recife, não é suficiente para livrar Bell do racismo institucionalizado em todas as camadas da nossa sociedade. A sua cor determina o que vão pensar da sua vida. Vez ou outra, é confundida com empregada doméstica no prédio em que mora: como se a sua pele fosse destinada às funções mal remuneradas.
A sua vivência de mulher negra, nordestina e classe média é o que marca a sua poética, ramificada entre as histórias das suas irmãs e dos seus irmãos de cor e de luta. O poder econômico geralmente é o que define o prestígio social de alguém. “Mas quando se trata de uma pessoa negra, mesmo esse privilégio não é capaz de mascarar o preconceito racial”, define a poetisa. É histórico e perverso. “A carne mais barata é a minha. Aqui é luta a cada verso. A carne mais barata é a minha. E tu quer falar de racismo reverso? Aterriza na realidade-dor”, diz um dos seus poemas.
O surgimento da poética
A leitura dos clássicos, na adolescência, a exemplo de Machado de Assis, Manoel de Barros, Carlos Drummond, Guimarães Rosa, e, já mais velha, na faculdade, o conhecimento das obras de Conceição Evaristo e outros nomes, foram decisivos na começo da escrita de Bell. Esta última, aliás, uma grande inspiração para ela. “Uma literatura acadêmica, respeitada no meio privilegiado, intelectual, de uma mulher negra que falava de racismo, de vivências”, explica. Elisa Lucinda, Carolina de Jesus e mais uma lista de mulheres que brilham nas letras servem de motor para o processo criativo da poetisa.
O escritor português Valter Hugo Mãe também aparece na lista de inspirações de Bell. “Eu não teria escrito sem ter lido ele. Foi muito importante para mim”, justifica. Além da literatura, a história, ainda que as duas acabem por se confundir em muitos momentos, foi determinante para o seu fazer poético. “Se eu não fosse historiadora, eu não seria esta poeta”, argumenta, tratando dos pontos que indignam, que são combativos na sua escrita.
Escrita, o exercício
Como uma boa leitora, Bell viu na produção literária uma forma de aparecer no mundo. Inicialmente, ainda adolescente, escrevia na conformidade que pede a gramática. Tudo conjugado. O amadurecimento da escrita veio ao dar ouvido à voz que pulsa na rua. Nem sempre “correta”. Nem sempre justa. A língua virou uma massa de modelar: ajustável, dinâmica. Mas não menos entendível. Ainda mais afrontosa.
Caminho das pedras
Bell conheceu o movimento através da página no Facebook “Slam Resistência” e participou do primeiro evento do Slam das Minas no Recife. Ao passo que foi sua estreia, foi também a sua consagração. Ganhou o concurso e garantiu classificação para a etapa nacional, em São Paulo, onde, aliás, foi ovacionada pelo público. Ganhou. Colocou a sua voz de mulher negra e nordestina no lugar em que merece estar.
Je suis Bell Puã
A vitória em São Paulo deu o passaporte para a etapa internacional, em Paris, na França. Uma abertura de caminhos e uma reafirmação do seu papel de slammer. Levar ao mundo a luta de segmentos da sociedade brasileira. Necessário. Mas foi também um choque de realidade, uma vez que, na competição, os versos menos politizados eram os mais festejados. Diferente do que ocorre por aqui, onde os seus versos mais políticos e fortes são aqueles que acendem a plateia.
Olhos d’água
A Festa Internacional Literária de Paraty foi palco para Bell mostrar a sua arte. Dividiu espaço com muitas das mulheres que lhe inspiram, a exemplo de Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Selva Almada. Emocionou o público ao abrir a mesa “Amada vida”, com “Da pertença e do revide”, um grito contra a opressão do povo negro inspirado em tema de Hilda Hilst. Sua voz foi consagrada mais uma vez.
Primeiro filho
Recentemente, Bell lançou “É que dei o perdido na razão”, o seu primeiro livro, pela editora independente Castanha Mecânica, de Fred Caju, com ilustrações da artista visual Ianah. Diferente do que faz nas suas performances de Slam, com textos ácidos e combativos, a sua obra de estreia traz poemas de amor, também forma de resistência e necessidade, diante de retrocessos e conservadorismos.
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