Entrevista

Tereza Costa Rêgo: 90 anos da mulher que cravou sua arte na história

A artista plástica, dona de obras monumentais, celebra, dia 28 de abril, nove décadas de uma vida dedicada ao amor e ao seu fazer artístico
Tereza Costa Rêgo escreveu uma história movida à intensidade – Foto: Jose Britto

Tereza Costa Rêgo celebra os seus 90 anos neste domingo, 28 de abril. Foi no seu apartamento, à beira-mar de Olinda, no bairro de Casa Caiada, que a artista recebeu esta repórter e o fotógrafo que assina as imagens desta matéria. Na entrada da sua casa, o tapetinho de corujas anuncia o que ela viria a nos dizer mais tarde: “Eu sou mais bicho que gente”, revelando todo o seu amor por animais, presentes na maioria das suas produções. Tereza é uma força da natureza e celebrá-la é, também, reverenciar a sua arte, um legado não só para Pernambuco, mas para o Brasil, para o mundo.

Enquanto Tereza termina de se arrumar para nos receber, dividimos a sala, repleta de telas da artista, com Gilda, “Gilda Costa Rêgo”, a sua cachorrinha, uma figurinha simpática da raça West Highland White Terrier, presente do neto. Naquele apartamento mora há pouco mais de um ano e meio. Antes, era uma casa de alguns andares no Amparo, parte alta da cidade. A mobilidade reduzida depois de uma queda forçou a mudança para um espaço sem tantos obstáculos. A outra residência virou a sua reserva técnica e, sobretudo, um refúgio.

“Eu sou mais bicho que gente”, fala Tereza ao contar do seu amor por animais – Foto: Jose Britto

Tereza surgiu no corredor quase que como um furacão delicado: falante, de peito aberto, com uma humildade proporcional à grandiosidade de sua obra, e uma elegância nada discreta, de óculos escuros. A conversa ocorreu em frente a um de seus quadros preferidos, “Mulher nua de costas”, de 2009. Começo lembrando o seu aniversário, os 90 anos e a chamo de “senhora”, um grande equívoco: “Um artista sempre é você, mesmo que seja muito velho” , ela pede, e mudo a minha forma de trata-la a partir dali. Tereza conta que não é das mais entusiastas em relação à data festiva: “Eu fico fazendo as contas de que poderia ter feito mais”, revela, humildemente. “Quando a pessoa faz 90 anos, fica naquela agonia de fim de linha”, continua. Mas revela que vive bem porque é feliz e toma vinho.

Mas ela não faz, nem de longe, o tipo que se entrega a este tipo de questionamento; conta que vai continuar pintando, inclusive os seus conhecidos quadros grandes. É aí, então, que Tereza solicita à sua ajudante, Maria, que pegue uma tela ainda em fase de acabamento. Tereza desculpa-se pelas imperfeições –possíveis e visíveis apenas aos seus olhos- e pede , depois de alguns minutos, que ele seja levado dali, de volta ao quarto onde tem produzido no apartamento, para ela “não se aperrear”.

“Mulher Nua de Costas” é um dos seus preferidos – Foto: Jose Britto

Dona do seu tempo

A sua história nos prende como num filme dos melhores. Tereza foi criada para o casamento e para o lar, sonhos, aliás, que nunca foram os seus, mas de sua família, pertencente à tradição açucareira de Pernambuco. Tereza era a única mulher em meio a cinco irmãos. “A minha educação foi muito repressiva pela minha mãe, que era muito católica; não podia nada, tudo era pecado, tudo ia para o inferno”, lembra.

O talento para o desenho sempre foi observado pelo irmão, o responsável por convencer a família a matricula-la na Escola de Belas Artes do Recife. “Eu aprendi desenho, perspectiva e conheci muitas pessoas que hoje são meus grandes amigos”, comenta. Foi na instituição que começou a amizade com um grande parceiro de arte e de vida, Reynaldo Fonseca. De perto ou da sua geração restam poucos: Francisco Brennand, José Cláudio, Montez Magno e o próprio Reynaldo. Tereza desponta como nome de peso num cenário dominado por homens.

Tereza lembra de outra mulher que também viveu de sua arte, Maria Carmem, uma das suas grandes amigas. “Era uma grande pintora, principalmente uma grande desenhista, talvez a maior desenhista de Pernambuco, era do nível de Abelardo da Hora”, diz, saudosa.

Foto: Rafael Furtado

Amou daquela vez como se fosse a última

Casou-se cedo, com o pai das suas duas filhas. “Um casamento sem graça”, sentencia, e só o pode fazer porque descobriu o amor verdadeiro, com doses intensas de paixão em um relacionamento marcado pela quebra de paradigmas sociais típicos da elite da qual fazia parte. Diógenes Arruda, grande líder comunista brasileiro, foi o amor da sua vida. Tereza o conheceu nas rodas políticas comandadas por seu irmão Murilo.

Alguns encontros depois e a concretização amorosa e sexual do que já vinha sendo sedimentado em conversas e olhares. “De amigo virou uma grande paixão”, lembra. É aí, então, que Tereza torna-se a primeira mulher da sua família a virar desquitada: intragável para a família, amigos, colunas sociais. Tereza abriu mão da sua vida de privilégios para viver com “um comunista que não tinha onde cair morto”, como ela mesma define Diógenes.

Tereza circulava pelas rodas intelectuais de todo o País – Foto: Arquivo Pessoal

Quando embarcou na aventura romântica com Diógenes, Tereza também decolou intelectualmente, cada vez mais interessada nos estudos. “Diógenes, onde ele chegava, botava as pessoas para estudar. Eu estudei muito o marxismo e fui uma pessoa do PCdoB”, conta. Tereza chegou aos grupos de intelectuais mais facilmente do que ela imaginava. “Apesar de eu ser uma burguesa para eles, eu fui muito bem recebida, nunca tive problemas”, ressalta. Até o amor tem um custo, e o que Tereza pagou foi alto: são inestimáveis o sofrimento e a saudade durante os anos que Diógenes passou preso e sendo torturado, durante a Ditadura Militar brasileira – entrou em 1968, saiu em 1972. As visitas de 15 em 15 dias ao Carandiru, à espera da sua vez, na fila, com comida, geralmente lombo assado, foram massacrantes. Ao passo que aliviava a saudade, abria ainda mais aquela ferida.

A artista plástica circulou pelas salas mais bem frequentadas intelectualmente do Brasil e do mundo. Foi num desses eventos que conheceu Darcy Ribeiro, antropólogo, escritor e político brasileiro; para Tereza, a pessoa mais inteligente com quem já dividiu uma conversa. Tereza viveu intensamente a ideia de comunismo e chegou a cursar doutorado na Sorbonne e escolheu para a sua tese o tema “A formação do proletariado brasileiro enquanto classe”. É claro que, em muitos momentos, Tereza recorria a Diógenes para tirar algumas dúvidas. A relação dos dois era mais do que dividir a vida, era terreno fértil para a troca intelectual.

Depois de todo o sofrimento pelas prisões que passou, pelos exílios e pela clandestinidade, Diógenes morre de uma parada cardíaca, quando estava recebendo o líder político João Amazonas no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, no dia 25 de novembro de 1979. Tereza, que viu aquele homem enfrentar a morte de tantas e tantas maneiras, não pôde se conformar com aquela forma estúpida e brutal de morrer. Aparentemente sem motivo, sem causa. Coisa de gente. Tereza conta que a sua reação, ao ver aquele homem, portal de sua vida e de seu amor, morto, sem razão aparente, foi só pegar no seu pescoço e perguntar: “Tinha que morrer agora? Por que você fez isso comigo?”, uma reação quase de criança, aos prantos.

A mulher e sua arte

A morte de Diógenes foi, de alguma maneira, divisor de águas na vida de Tereza. Se por um lado ela havia perdido o grande amor da sua vida; ela toma um posicionamento e busca se desvencilhar da Tereza criada para ser decorativa, da Tereza mulher do líder político. A partir dali, era só ela: Tereza e sua arte, marinheira só de sua trajetória.

É, assim, então, que a sua arte ganha corpo, força. E o nu feminino, que ela começou a estudar indo escondida às aulas de modelo vivo na Escola de Belas Artes, aparece cada vez mais nas suas telas. A história de Pernambucano também floresce nas suas pinceladas, principalmente com a série “7 Luas de Sangue”, de 1988, em que revive vários fatos históricos do estado, a exemplo da Batalha dos Guararapes. Involuntariamente, começa a usar o vermelho nas suas obras. E esta vem a ser a sua maior impressão em tudo que faz: a cor viva, corrente reflete bem o que Tereza fez nestas nove décadas.

Mulheres de Tejucupapo – Foto: Reprodução G1

A dimensão dos seus quadros virou uma marca sua: quando não telas enormes, painéis de cinco, seis e até oito metros. Em 2017, celebrou os seus 88 anos com exposição em que exibiu a sua mais recente criação à época, o painel “Mulheres de Tejucupapo”, uma obra-prima que extrapola qualquer limite territorial e ganha status de universal, feito em acrílico, com 8m X 2,2m: “Aquele quadro saiu do meu útero, não foi da minha cabeça. É um negócio muito forte”.

Outra característica que merece destaque na sua arte é a presença de animais: cobras, bodes, cachorros, gatos. “Eu nunca vi um tatu, mas eu sou fascinada com tatu”, conta, sobre o bicho que aparece em tantas e tantas obras suas.

O saldo da intensidade

Quando Tereza conta de suas inspirações, revela que não gosta de nada preferido, rejeitando por completo a ideia de ídolos. “Eu tive um homem preferido e paguei caro por isso”, explica. Também não é do tipo que se pega a muitos fazeres, é focada. Ao perguntar se ela gosta de tecnologia, mal espera que eu termine e já responde: “Eu não sei de nada. Nem quero. Toma muito tempo, e eu estou velha, meu tempo é precioso para a minha pintura. Não quero dispersar aprendendo essas coisas”.

Tereza lembra da homenagem que recebeu da Prefeitura do Recife em 2011, quando elementos das suas obras estamparam a decoração do Carnaval da cidade, assinada por Joana Lira. A artista conta que foi o momento mais emocionante da vida, principalmente por ver a sua arte na rua. E rememora o momento em que chegou ao Classic Hall e viu o ex-governador Eduardo Campos e a mulher, Renata, à sua espera depois da ponte, por onde ela passou deslumbrada, ao observar as suas mulheres em tamanho que a vista precisa passear um bocado para alcançar. “Quando eu olhei, estavam os dois com camisa com o meu desenho. Quando eu vi o meu desenho no peito do governador, que era meu filho de uma certa forma, foi lindo”, contou, saudosa.

Foto: Rafael Furtado

Radar político ligado

Quando peço para que ela comente o momento político atual, mais especificamente o governo do presidente Jair Bolsonaro, Tereza desconversa: “Vamos falar de flores?” e sorri. Mas a veia política é mais forte e ela faz questão de emitir a sua opinião. À época das eleições, vale lembrar, Tereza participou de um vídeo com outras mulheres pernambucanas contra o então candidato à Presidência da República. “Eu acho uma tristeza. Um país tão maravilhoso, com um território tão maravilhoso, onde tudo dá, e a gente com Bolsonaro mandando e desmandando é triste”, opina.

Pedido é ordem

Os 90 anos de uma história intensa, sólida e visceral poderiam ser suficientes para Tereza. Mas não. Tereza quer mais da vida. E com todo o direito. Ela conta que se habituou a viver da sua arte, do seu trabalho. “Eu gostaria de fazer uma exposição no Museu de Arte de São Paulo”, um desejo que começou a nutrir não faz muito tempo. Este é um desejo de uma mulher que já expôs na França, China, Portugal. Imediatamente, nos vem o apelo: o que ainda está faltando para as obras de Tereza ocuparem os salões do Masp?

1 Comentário

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  • Cara Roberta,
    obrigada pela reportagem.
    Tereza estudou em nossa turma de História na USP. Cheguei a ir a sua casa, quando era casada com Diógenes Arruda´, líder do PC do B. Depois, foi com Diógenes para o exílio. Quando voltou e voltou para Olinda, eu já estava na Paraíba e fui vê-la na casa do Amparo, que ela fala na entrevista. Sua cabeça é mil, sua obra, maravilhosa.
    Você tem o endereço dela, queria enviar uma correspondência. Moro em São Paulo (Jundiaí)