Tereza Costa Rego tinha planos de realizar uma grande exposição restrospectiva de sua obra para comemorar os 9O anos de idade em março, no Cais do Sertão. Com a pandemia, a mostra foi adiada para o ano que vem. Em dezembro do ano passado, a pintora, no entanto, realizou uma exposição chamada Antes do cio dos gatos, em parceria com as jovens artistas Juliana Lapa e Clara Moreira. A seguir, leia o texto escrito pelo curador da exposição, o jornalista e autor da biografia de Tereza, Bruno Albertim:
Sobre Antes do cio dos gatos
Da perda, pessoal e incontornável, veio, contraditória e inesperada, a libertação. Após a morte súbita da mãe, começo dos anos 1980, uma jovem Tereza Costa Rêgo pinta a primeira habitante da população de mulheres despidas que passariam a morar suas telas. Não desconfiava a artista: ao despir sua personagem inicial, Tereza desnudava a si própria e a mulheres encarceradas em vestes de gerações que a antecederam ou lhe sucedem. A nudez, em Tereza, nunca será gesto individual.
Filha de uma família da aristocracia sacarina pernambucana, bisneta do conde que empresta o nome à principal avenida do centro do Recife, conheceu de muito perto a musculatura do patriarcado. Como tantas meninas-senhoras, aprendeu piano e pintura. Criada, como gosta de dizer, para decorar o grande instrumento de cauda na sala, quebrou tantas vezes o piano para irromper pela janela. Tereza, ciente de si, proclama: é o voo, jamais o ninho.
Ao lado de jovens colegas como Brennand ou Reynaldo, na Escola de Belas Artes do Recife via a arte da primeira metade do século 20 perder dogmas academizantes para se fazer moderna – no País e em seus próprios cavaletes. Ia dando acento feminino ao Modernismo Pernambucano: das lições de mestres como Vicente do Rêgo Monteiro ou Lula Cardoso Ayres, imprimia a subjetividade coletiva e sufocante de meninas-mulheres como ela.
Ainda em 1949, Menina e ex-votos foi premiado num dos primeiros Salões de Arte do Recife: na composição, uma jovem na penumbra, olhar ternamente obscuro, parece esconder-se do (ou no) peso do patriarcado que lhe talha a carne. O guarda-chuva, tema recorrente, passaria tanto a proteger como a dividir a subjetividade de suas personagens ávidas por irromper os limites das telas.
Ao expor, não sem retaliações, a vagina inicial, Tereza fez de sua pintura uma pintura da afirmação da mulher num século de negações. Estava ali a mulher assumindo agência e regência de um corpo historicamente castrado. A nudez corajosamente coletiva. Hormonal, porque vermelha. Social, porque convocatória. Ainda que cobertas de tecido, as mulheres de Tereza jamais deixariam de estar despidas.
Aos 90 anos de idade, Tereza Costa Rêgo segue pintando com o corpo
Agora, a nudez de suas mulheres irrompe em diálogo com as mulheres desnudas de Juliana Lapa e Clara Moreira. Duas das jovens artistas pernambucanas de maior densidade narrativa, Juliana e Clara também desenham com seus músculos tencionados entre a subjetividade o objetivo do mundo nem sempre melhor rabiscado ao redor.
Neste encontro arriscado, inevitavelmente impreciso, Juliana vai construindo, perícia e escrutínio, coragem e cuidados, a mítica além dos arquétipos. Suas personagens trazem tanto mitos fundantes, a fecundidade inadiável de florestas-fêmeas, como a iminência do gesto capaz de concretizar o agora. Mulheres em gestação de si.
Narrativa como a Tereza das grandes séries históricas, Clara Moreira transita entre o planejado e o inesperado. Dança entre o previsível e o devir. Suas mulheres-pássaras estão preenhes do gesto no momento preciso em que o movimento começa a surgir.
O encontro das jovens com a artista sem a qual uma arte corajosamente fêmea não teria sido plenamente possível desfaz alguns mitos. Um deles, o de que pintura é silêncio. As narrativas de Tereza, Juliana e Clara trazem personagens na iminência do vôo. Na gestação do grito.
Elas sempre estiveram lá. Percebem o mundo antes que o universo se erga no cio dos gatos.
Bruno Albertim, curador.
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