O homicídio ocorrido em uma unidade da rede Carrefour segue mobilizando cidadãos e instituições. Para analisar a conduta de agentes e empresas e entender os prováveis desdobramentos do caso, o site Roberta Jungmann conversou com três especialistas.
Segundo o sociólogo Rafael Sales, pesquisador em Ciências Sociais com experiência em Responsabilidade Social Corporativa e Segurança Pública, a morte de João Alberto teve de fato motivação racista.
“O assassinato brutal do Sr. João Alberto Silveira Freitas por funcionários contratados pelo Carrefour é algo estarrecedor e brutal, mas é apenas o ponto mais visível do racismo cotidiano e transversal de nossa sociedade. Já conhecemos muito bem a seletividade do Sistema de Justiça Criminal com pessoas negras, que direciona as forças policiais para as favelas, que revista sempre o jovem negro, que bota o pé na porta do barraco e atende cordialmente a mansão”, analisa.
Consultor de agências das Nações Unidas como Unesco e PNUD em diferentes projetos, Sales aponta a naturalização de condutas desiguais diante de indivíduos negros e brancos. “Conhecemos como o Mercado seleciona sempre prioritariamente pessoas brancas e que se aproximam de uma aparência sempre mais europeia e sempre menos africana. O mesmo tipo de fenômeno que orienta essas conhecidas realidades brasileiras “autoriza” o assassinato a sangue frio de um homem negro, em um espaço público, em uma quinta-feira comum”.
Ele também destaca o contraponto de estatísticas e classificações partindo da perspectiva de raça. “Não é coincidência que os negros representem dois terços da população carcerária no Brasil. Que os negros representem 75% das vítimas de assassinato. Que apenas 6% dos negros cheguem a cargos de gerência nas empresas brasileiras. Que o “rolezinho” no shopping seja ameaça. Que os milenares Deuses africanos sejam colocados como demônios. Que o negro bem sucedido seja arrogante”, compara.
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Para o sociólogo, é preciso que a conduta das empresas envolvidas no caso seja proativa a partir de agora. “O Carrefour e a Vector (empresa terceirizada de segurança) têm que imediatamente se responsabilizar pelo ocorrido, compreendendo isso como uma consequência da sua omissão no assunto. O suporte à família da vítima deve ser amplo e irrestrito, provendo inclusive indenização de maneira voluntária. A questão do racismo deve ser alvo de discussão e transformação do alto escalão da empresa, incorporando práticas antirracistas em todos os níveis, de maneira transversal a todas as políticas da empresa”, sugere.
Ele também indica que as manifestação realizadas em resposta ao crime são legítimas: “O que ocorreu não foi um mero espancamento. Foi um assassinato racista. Os protestos decorrentes disso não foram atos de vandalismo. Mas reações legítimas de uma população historicamente exterminada, humilhada, vitimizada”.
O pensamento de Sales é compartilhado pelo advogado Eliel Silva, membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB/PE. “As manifestações são totalmente legais, livre manifestação e direito de reunião são garantidos por nossa Lei Maior, a Constituição. Há limites nos protestos, é claro. Mas o que me chama atenção nesses casos é sempre a ponderação que as pessoas desonestas fazem: bem material versus o fato de repercussão que provocou o protesto”, analisa.
De acordo com Silva, a mobilização social pode apoiar o julgamento do caso, diminuindo as chances de omissões. “Eu sempre acho bastante positivo porque mostra que a sociedade não naturaliza esse tipo de crime. E nesse caso do Alberto houve repercussão em todo o território nacional e até internacional. Então, isso mostra que têm pessoas olhando e que a sociedade está indignada sobre esse caso. Essa perspectiva de se colocar nas mídias, de se fazer protesto, de se colocar em pauta, é justamente para que não haja nenhum tipo de omissão das instituições, por parte de quem vai conduzir o inquérito, por parte do Ministério Público. Isso tudo causa uma grande fumaça de monitoramento”.
No entanto, segundo o advogado, o caso dificilmente será enquadrado como racismo. “Infelizmente, na minha leitura, o caso de João Alberto não será enquadrado como racismo porque a gente ainda tem muita dificuldade de ampliação no tipo penal nesse sentido específico para a responsabilização”, explicou.
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Ainda assim, comenta, o supermercado também deve responder pelo crime ocorrido em suas dependências. “O Carrefour responde em razão do ato ilícito praticado dentro da sua estrutura. E o que vai acontecer? Tanto os causadores da violência, do crime, quanto a empresa privada que presta serviços para o Carrefour serão colocados no que a gente chama dentro do Direito de um litisconsórcio passivo. E aí eles vão responder por esse dano, o que não impede também que o Carrefour seja responsabilizado pelo ato ilícito praticado pelos seus prestadores de serviço”.
Para Silva, é preciso que haja uma mudança na cultura e nas ações da empresas a fim de evitarem que casos como esse se repitam. “O que está em debate também é como pessoas negras são vistas na sociedade: como corpos de fácil violação. Toda mudança é estrutural, assim como o veneno o é. Se o racismo é estrutural, as práticas antirracistas também o devem ser. A mudança virá quando mais negros e negras ocuparem os cargos dessas instituições e promoverem mudanças estruturais, desde o atendimento aos clientes e segurança. Mudança vem com responsabilização e reparação”, analisa.
Ana Lucia Custódio, diretora-adjunta do Instituto Ethos, organização que busca mobilizar as empresas a gerir seus negócios de forma socialmente responsável, tornando-as parceiras na construção de uma sociedade justa e sustentável, também explica como as empresas podem treinar seus funcionários para que episódios como o do Carrefour não voltem a ocorrer.
“Primeiro de tudo é necessário que a empresa tenha políticas e procedimentos estruturados relativos aos direitos humanos, que sejam explícitos quanto à coibição de qualquer tipo de comportamento racista ou de violação dos direitos humanos. E assegurar que os funcionários, próprios ou terceiros, sejam treinados nessas políticas”, diz.
Master em Gestão Empresarial e especialista em Economia Brasileira e Globalização, Ana Lucia compara o que as organizações devem aprender a partir da situação vivenciada no supermercado. “Esse caso nos mostra que é fundamental ter um alinhamento entre o que a empresa acredita – o que ela tem como valor –, com o que é praticado também por seus prestadores de serviço. E uma empresa que conduz seus negócios de forma responsável tem o dever de influenciar e exigir que o seu padrão de operação seja adotado por seus prestadores de serviço e demais empresas de sua cadeia de valor. Ela precisa ser ativa no monitoramento e na condução de processos de due diligence, para se assegurar de que esses padrões sejam efetivamente seguidos e, diante de não-conformidades, atuar na correção ou desligamento dessa empresa”.
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A diretora analisou, inclusive, que apesar de o histórico de violência puder revelar negligência por parte da rede de supermercado, é possível que a empresa realmente mude suas políticas e atue no combate ao racismo.
“O histórico e a reincidência agravam as análises que estão sendo feitas nesse momento. É possível e é desejável que uma empresa, hoje confrontada pela sociedade por sua corresponsabilidade em um processo como esse, assuma uma posição de se comprometer com a superação do problema. O combate ao racismo se dá de forma sistêmica. Para mudanças efetivas, é necessária muita vontade política. Ter o compromisso com os direitos humanos como vetor para todas as decisões da companhia. Isso exigirá planos de curto, médio e longo prazos, que sejam construídos em diálogo com a sociedade”.
E acrescentou: “Espero que, nesse caso, o Carrefour dê essa resposta. E espero que as demais empresas, que estão assistindo isso acontecer, sejam proativas na revisão de seus processos e políticas para que não tenhamos novos casos como esse”.
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