Por Bruno Albertim
Gilberto Freyre, o sociólogo que faria 120 anos e que nos deu uma das principais chaves de compreensão do Brasil a partir de seu patriarcado escravista, dizia que o Recife é acanhando. Ao contrário do Rio de Janeiro e de Salvador, exibidas sem pudor sobre seus morros, a capital de Pernambuco exige que suas belezas sejam conhecidas pouco a pouco a partir de seu porto. Freyre mudaria de ideia se fizesse uma refeição no Cais Rooftop – apesar do anglicismo, o bar e restaurante instalado sobre o Cais do Sertão, museu de referência e reverência à cultura sertaneja instalado no casco antigo do Recife.
Aqui, cenário importa tanto quanto a mesa. Porque ninguém vai ao Cais apenas para comer. Sofisticado, hype desde antes de abrir em dezembro passado, este é o “telhado” onde todos, residentes ou forasteiros, parecem querer estar no Recife neste momento. O projeto arquitetônico, assinado pelo escritório de Humberto Zírpoli que tem assinado 11 de cada 10 restaurantes contemporâneos na cidade, deu à cidade uma nova atração; e ao restaurante, um grande ímã além do cardápio.
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São dois ambientes. No externo, um grande terraço ao ar livre, com mesas altas, bar, tendas com pufes e sofás. Música vibrante com DJs e um jardim que traz, num grande arroubo cênico, a caatinga para perto do mar, avistado por cima e cortado pelo molhe de arrecifes do Porto com o Parque de Esculturas de Brennand como assinatura visual. Aqui, servem-se apenas bebidas e entradas.
No ambiente interno, um salão envidraçado como num aquário gigante, há mesas convencionais, muito couro e madeira, poltronas confortáveis, música mais amena. É onde o cardápio, dos petiscos ao principais, é servido por completo. Em qualquer dos lugares, a sensação é de flutuar sobre a cidade: se de um lado há o mar; do outro, o casario histórico do Recife Antigo, a Torre Malakoff acariciando o céu, nos informando como o Recife já teve compromissos tão ludicamente concretos com a beleza.
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O cenário vai garantir boas lembranças – e gerar muita cobiça – na sua conta do Instagram. E mesmo assim, é secundário. Porque o Cais Rooftop, hypes à parte, é um lugar para ir apenas para se comer – e bem.
Jason Vieira, um dos cinco sócios que se dispuseram a investir R$ 2 milhões no restaurante (desde a abertura da segunda etapa do museu, nenhum empresário, temendo o risco e entraves como a estrutura não contar, por exemplo, com uma grande câmara fria ou um elevador exclusivo para abastecimento) fez as primeiras formulações conceituais do cardápio.
Mas é o chef Renato Valadares quem assina sua versão concreta: une influências e latitudes várias para apresentar à mesa um sertão além do estereótipo, cosmopolita, sofisticado e ciente de suas tradições.
Conseguir um lugar na área externa para ver o por-do-sol (e ficar compartilhando muitas entradinhas entre um drinque ou um rosé) pode ser tão ou mais gratificante como incorrer no menu completo. Vejamos a “tábua de frios”, que é muito além de uma (tem coisa mais batida?) “tábua de frios”.
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Batizada de Lisbela (R$ 69), traz 400 gramas de queijos prima dona, manteiga, cabra, reino, salamimho e presunto cru da Fazenda Yaguara, de Taquaritinga do Norte. Produtos de uma pequena indústria que trabalha com escala artesanal, cheios de personalidade e potência de sabor, e capazes de denunciar bem a paisagem cultural de onde vieram. Compartilhe, sob o risco de não conseguir seguir adiante no cardápio.
Já clássicos ali são o Capitu (uma porção de bolinhos de rabada, cremosa, com chutney de manga, R$ 36) e o Sinhá Vitória (porção de pastel de festa, inspiração nordestina-marroquina na massala que tempera a carne, com molho ponzu, R$ 32). Ou se é pra demarcar ainda mais território, um tartar de carne de sol (R$ 40), ainda tenra, com nachos de queiro do reino e um tão bom quanto inusitado chips de jiló.
Na parte “interna” do restaurante, é servida a seção de principais. Nesse sertão litorâneo, alguns dos pratos melhor arquitetados, curiosamente, trazem pescados.
Pedi um lombo sedoso de robalo (R$ 55) delicadamente assado ao forno, em contraponto a um azeite de laranja-cravo que evidencia a delicadeza do peixe. De guarnição, legumes grelhados em azeite de babaçu, funcho e farofa de tapioca e banana.
Mas não deixei de compartilhar do prato dos meus acompanhantes. O Baião de Dois do Mar (R$ 65), traz o arroz vermelho, tipicamente sertanejo, caldoso, com um pouco de tucupi, numa profusão de camarão, aratu, polvo e mexilhões, misturados a feijão de corda.
O azeite de laranja em que os crustáceos são salteados também oferecem um delicadíssimo travo adocicado aos camarões em crosta de gergelim (R$ 69), grandes, servidos com uma mistura de maxixe e wassabi fritos e farofa amanteigada. Uma epifania.
Em seu primeiro grande cardápio autoral apresentado na cidade, o chef Renato Valadares parece harmonizar os pratos pela contraposição equilibrada de notas distintas de sabor. O mignon de sol, por exemplo, tem o sal da carne acariciado por uma crosta de açúcar mascavo, num molho de cebolas confitadas em manteiga com pimentas brasileiras, mais cubos de macaxeira, jerimum e uma (nova e pernambucaníssima) farofa de queijo-do-reino.
Os preços são compatíveis aos dos praticados no mercado local – ou seja, uma refeição ali custa menos que o burburinho em torno do luxo concreto do lugar tem provocado. E há, ainda, nos dias úteis, boas fórmulas de almoço executivo.
A cozinha do Cais é, sem contradições, regional e cosmopolita, com um resultado que amplia fronteiras do prazer gustativo. Apenas uma ressalva para o fato de que a carne que é sinônimo imediato semi-árido não esteja em nenhum prato. Mas o chef diz que já pensa em incluir cortes de bode ou carneiro nas próximas ampliações de cardápio desse sertão tão bem-vindo ao mar.
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