Quantos músicos eruditos negros você conhece? Quantos maestros negros vocês viram reger uma orquestra? Segundo uma pesquisa divulgada em julho pelo site Middle Class Artists, apenas 3% dos cantores regulares na história da Metropolitan Opera House de Nova York eram negros. E as estatísticas são similares a de outros estudos.
Uma pesquisa norte-americana de 2014, por exemplo, mostrou que somente 1,8% dos músicos de orquestra do país são negros. No Brasil, no entanto, ainda não há registros de levantamentos semelhantes com recorte racial. Mesmo assim, a ausência de diversidade nas salas de concertos do país, tanto no palco quanto na plateia, é facilmente perceptível.
É em meio a este cenário de ainda pouca representatividade que atua o personagem da terceira reportagem da série Negritude Pernambucana, produzida pelo site Roberta Jungmann. Natural de Olinda, cidade da Região Metropolitana do Recife, o maestro Israel de França venceu as duras estatísticas e tornou-se uma das referências quando se fala em regentes negros na música clássica.
“Comecei meus estudos de música no ano de 1978 na Banda Sinfônica Juvenil Pernambucana na Escola Cônego Jonas Taurino, conhecida como ‘Caranguejo’, no bairro de Peixinhos, em Olinda. Iniciei com a Requinta e logo após passei a estudar violino no projeto Espiral com o professor espanhol Luis Soler Realp, concluindo quatro anos de violino no curso realizado pela UFPE juntamente com a Secretaria de Educação”, recordou.
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O desejo de, além de ser violinista, também tornar-se regente surgiu ao longo da trajetória como instrumentista. “A inclinação na carreira de maestro veio depois de passar como violinista por várias orquestras do país”, disse.
França iniciou seu caminho profissional com um estágio na Orquestra Sinfônica do Recife. Atuou, posteriormente, como violinista da Orquestra Sinfônica de Campinas, em São Paulo, e da Sinfônica da Paraíba. Em 1990, a convite da Professora alemã Christa Rupert, ingressou no Conservatório Superior de Música de Lisboa. De lá, foi para a Espanha, onde ingressou, por concurso público, na Orquesta Ciudad de Granada, na qual permanece até hoje.
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Atualmente, aliás, divide-se entre a cidade europeia e a cidade natal. “Moro entre Olinda e Granada, na Espanha. Permaneço como Regente e Violinista da Sinfonietta de Granada. Minha rotina quando estou na Espanha é ensaio como violinista na Orquesta Ciudad de Granada de segunda a sexta e concertos nas sextas e sábados à noite”, comenta. Além disso, ele também se apresenta com a Sinfonietta, conciliando os ensaios com aulas de violino.
A agenda que intercala um mês na cidade espanhola e um mês na brasileira se dá pelo amor a Pernambuco e a dedicação ao projeto social do qual orgulhosamente é fundador. “Olinda é a cidade dos meus sonhos, da minha vida, e por isso criei o Projeto Social Orquestra de Câmara do Alto da Mina, nos Bultrins”, contou.
Quando está na Marim dos Caetés, leciona todas as tardes na orquestra, que atende crianças e jovens entre 8 e 18 anos, levando cidadania por meio da música. Além disso, também prepara o repertório para as apresentações da OCAM e rege os meninos e meninas nos concertos de música de Câmara em Pernambuco.
“Sou o maestro fundador desse projeto, que já existe há mais de 5 anos. Sinto muito orgulho em ver vidas sendo salvas através da música. Minha ideia vai muito mais além quando penso em replicar esse projeto a outras comunidades”, diz.
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No início da pandemia, Israel de França estava na Espanha, seguindo o confinamento europeu. Nesse período, manteve a rotina de ensaios e presenteou seus vizinhos com belas apresentações.
“A cada dia, durante três meses, eu interpretava uma obra na varanda para os vizinhos e também segui o ritmo da prática violinística com duração de 4 a 8 horas, todos os dias”, comentou. Ele conseguiu retornar ao Brasil apenas no último dia 4 de outubro.
Foi também durante a pandemia que o mundo viu as ruas dos Estados Unidos serem tomadas pelo movimento Black Lives Matter após o assassinato de George Floyd em maio deste ano. Em meio às manifestações, a Orquestra Filarmônica de Nova York emitiu um comunicado histórico em que afirma que tomaria medidas comprometidas com “os mais altos ideais de justiça racial, diversidade e inclusão” e reconhece que ainda tem muito a aprender sobre a história de racismo no país.
Aliás, o baixo índice de pessoas negras no universo da música clássica também é percebido na plateia. De acordo com a LaPlaca Cohen, instituto de pesquisa especializado em artes, em um estudo divulgado em julho, apenas 3% do público deste segmento é composto por negros nos Estados Unidos.
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Em meio a todo esse contexto, o jornal The New York Times estampou na capa de seu caderno de cultura a manchete “Opera can no longer ignore its race problem”, ou “A ópera não pode mais ignorar seu problema ligado à raça”, em tradução livre, cuja a reportagem trazia depoimentos de artistas negros e um artigo do crítico-chefe do jornal, Anthony Tommasini, sugerindo, segundo o portal UOL, mudanças no processo de contratação de músicos para que orquestras tenham mais diversidade.
Essa pouca representatividade é enxergada pelo músico pernambucano, que revelou desconhecer outros maestros negros que façam sucesso no Brasil ou no exterior. Com origem humilde, vindo do bairro de Peixinhos, um dos mais simples de Olinda, o maestro Israel de França foi alvo, ainda jovem, da discriminação existente na sociedade. “No ano de 1981, eu tinha 16 anos e ia atrasado para um concerto com o professor espanhol Luis Soler, quando dois policiais me abordaram nas imediações do Parque Treze de Maio dizendo ‘Pega Ladrão, Pega Ladrão’, recordou.
Ele tentou explicar que o violino que o acusavam de ter roubado era de fato dele. “Eu incansavelmente dizia que não tinha roubado o violino. Ao final veio em minha mente abrir o instrumento e tocar e foi quando interpretei ‘Jesus Alegria dos Homens’ de J.S Bach. Após a interpretação, eles me liberaram e eu segui para o concerto-aula”, contou.
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A pergunta que fica desde então é o que levou os agentes a duvidarem que o jovem negro e pobre poderia ser um estudante de música clássica. “É normal que fique sempre algo negativo dentro de você, mas eu consegui superar com a ajuda dos meus professores, familiares e amigos”, disse o maestro.
Já adulto e na Espanha, ele foi novamente vítima de racismo. “Fui vítima de uma agressão na Espanha, fui espancado por policiais em 2012. Estava caminhando com um amigo quando fui abordado e levado para um edifício e espancado sem motivo algum. Nesta época, eu era maestro do Coral dos Advogados de Granada e imediatamente os advogados fizeram a denúncia, ficando indignados. Esse segundo ato racista ficou e ficará marcado para o resto da vida. Será impossível apagar essa tão grande brutalidade”, disse.
É inevitável, assim, a sua consciência sobre a importância de debater o racismo e combatê-lo. “Devemos estar constantemente atentos e protestando pela igualdade racial”, afirmou. Inclusive, ele destaca o papel social que a música clássica pode exercer: “Mesmo que o violino na sua tradição seja considerado um instrumento de música erudita, eu particularmente quando estou na Europa me dedico mais a esse estilo, e estando no Brasil, fico dividido entre a música erudita e a Música Popular Brasileira, regional”. É assim, por exemplo, que ele e as crianças mesclam o clássico e o popular nas apresentações da Orquestra Alto da Mina.
Com aguçada memória, o maestro lembra bem a primeira vez que regeu uma orquestra: “Foi em 2001, em um concurso de regência com a Orquesta Ciudad de Granada, regendo a abertura da ópera O Barbeiro de Sevilha, de Gioachino Rossini, no Auditório Manuel de Falla, em Granada”. Aliás, ele também guarda com carinho outras apresentações que lhe são especiais.
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“A primeira foi ainda como estudante do Projeto Espiral quando debutei como solista à frente da Orquestra De Câmara da UFPE, no Teatro Santa Isabel, sob a regência do Maestro Luis Soler. E outras são: Tocar no auditório da Filarmônica de Berlim, Escala de Milão, Musikverein Viena, junto a Orquesta Ciudad de Granada. E, para finalizar, regendo a Sinfonietta de Granada, no Auditório de La Cajá Rural, interpretando músicas regionais pernambucanas, junto ao Sanfoneiro Derico Alves”, elenca.
No Carnaval deste ano, inclusive, o maestro foi homenageado pelo Bloco Carlitos de Olinda. Foi mais um dos reconhecimentos que guarda com orgulho. “Recebi essa homenagem com muito carinho, já que o Bloco Carlitos tem muita tradição na cidade de Olinda, lembrando também que fui homenageado pelo Bloco do Barão e O Homem da Meia Noite”, recordou.
O carinho e o reconhecimento do público, aliás, também fazem o coração do maestro Israel de França aquecer. “Sempre agradeço a Deus o carinho e os aplausos do público, independente da quantidade. Cinco pessoas ou duas mil, sempre toco com o mesmo entusiasmo e dedicação”, disse.
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Com uma carreira de sucesso e reconhecimento no Brasil e no exterior, os sonhos que o instrumentista e regente ainda deseja realizar são reflexo do seu empenho junto ao projeto social que fundou e a vontade de levar a música para mais pessoas. Ele elencou alguns desses desejos: “Realizar turnê internacional com a Orquestra de Câmara do Alto da Mina. Ver alguns alunos do nosso projeto estudando no exterior. Fundar a nova Orquestra Sinfônica de Olinda. Criar pontos musicais onde os artistas possam fazer seus shows remunerados e ser reconhecidos verdadeiramente como profissional”.
O maestro aproveita, ainda, para deixar uma mensagem para os jovens que sonham com a música clássica, especialmente para os meninos e meninas negros que venham a nele se inspirar: “Quero dizer que nada na vida é impossível. Todo sonho pode se tornar realidade quando a gente quer. Que as dificuldades do dia a dia não sejam motivo para desistir. Você que estuda música ou pensa em ingressar nessa carreira, conte comigo. Meu conselho final é: estudar, estudar e estudar”.
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