Foi num Portugal atemporal que o menino Jaime Alves criou-se. Nascido no Norte. Monção, o nome da cidade das velhas muralhas, já nas bordas da Espanha. Uma cidadezinha sagrada como a terra do vinho Alvarinho e da concorrida Feira da Foda. Concorridíssima.
Nos dias de matança do porco, as aldeias se enchiam. Broas, pasteis, aguardente de uva e uns tragos de vinho para o trabalho coletivo ir transformando o porco cevado o ano inteiro nos muitos enchidos, fumados e nobíssimos presuntos para aquecer os dias de inverno. Presuntos tenros com a capacidade de fazer unir céu e terra em lâminas finíssimas sobre o paladar de quem os prova.
Ali, o pequeno Jaime aprendeu que do porco o que não se aproveita é o chiado. Dessas tradições fincadas na velha alma lusitana como os sulcos na face dos antigos, ele foi treinando a perpetuação dos costumes. A choriça é uma delas, embutido temperado e adensado por pasta de pimentão e toucinho. Mais que iguaria, um emblema.
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“Não passávamos necessidades, mas carne de boi só em dias muito especiais. Vivíamos uma ditadura muito feroz. Tínhamos muitos porcos em casa, que usávamos para fazer sobretudo as chouriças”, ele conta. Saiu de Portugal onde viveu a ditadura de Salazar para Paris, de onde, no ano 2000, veio conhecer Olinda e se apaixonou. Trouxe o que importa: o conhecimento íntimo de uma cozinha nada dependente de livros ou cordon-bleus. Uma cozinha que se herda de quem nos deu ao mundo e com as gerações que os antecedem.
Comer seu cabrito assado com arroz de pingo – justamente a gordura que gostosamente pinga sobre os grãos enquanto a carne assa – é de fazer o transporte mediúnico imediato para uma aldeia. Suas sardinhadas poderiam estar inscritas num livro do tombo: gordas e de águas frias lusitanas, assadas com vísceras só retiradas antes de servir, para garantir o untuoso sabor.
Depois de abrir o Tribuna Sabores Ibéricos na Rua de São Bento – hoje sob a batuta da antiga parceira Ana, e de estagiar em alguns endereços do Recife, o chef Jaime traz de volta sua cozinha a Olinda. Agora, num intrigante casarão à beira mar dos Milagres.
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Sem intervenção de paisagistas ou arquitetos, um quintal caseiro e adaptado para refeições lautas e informais. Diante de um mar crespo, mexido, como símbolo inevitável desta cozinha que atravessou o Atlântico.
Com a ajuda da preciosa cozinheira Lu Araújo, o bacalhau, alto, de lascas soltando-se por sua gelatina natural, é um pequeno monumento regado em azeite – obrigatório para molhar o pão aldeão da casa ($ 140, para dois ou até três, a depender das entradas). Nesta cozinha, atalhos como panelas de pressão não são admitidos. O polvo é cozido sem sal – para não desidratar – por 45 minutos com cebola e louro e, depois temperado, assado sobre brasas.
Tente a plancha de bacalhau alto, polvo e gambas. Com batatas ao murro e pimentões coloridos. Pura auto-indulgência. Não sem antes provar o bolinho, cuja trama de bacalhau e batata se desfaz numa teia que exige um pouco de pimenta e muito azeite.
Ou a chouriça-emblema. De liturgia respeitada: flambada com bagaceira, à vista do cliente, em grelha de cerâmica na forma de um porquinho de quintal. Comida à mesa e uns tragos de vinho ou uma cerveja gelada depois, não é difícil imaginar Portugal um pouco depois daquele mar ali na frente. E, quem sabe, encomendar ali até uma “foda”.
Antes que a libertinagem lhe tome a cabeça, lembre-se: “foda” é o nome informal dado ao cordeiro assado e à feira que celebra esta e outras tradições de mesa na aldeia de Pias, um dos lugares de Monção onde comida é escudo, prazer e bandeira.
Serviço
O Tasca Ibérica funciona das 11h30 às 23h, de terça a sábado.
Domingo, das 11h3 às 16h.
Na Avenida Manoel Borba, 182.
Fone: 98015563
*Por Bruno Albertim
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